As transformações da humanidade e, consequentemente do ambiente jurídico, nos trouxeram muito além das habilidades técnicas, abrangendo as habilidades comportamentais e tornando-as ainda mais fundamentais para o exercício do Direito. Apesar de fazerem parte do vocabulário corporativo brasileiro há um tempo considerável e serem muito importantes para o exercício do Direito desde sempre, as soft skills, ou competências socioemocionais, vêm ganhando cada vez mais relevância. Hoje, inclusive, o que pode diferenciar os profissionais do setor e garantir que sejam bem-sucedidos em meio à concorrência e diante do avanço não apenas da tecnologia, mas do mundo, são exatamente suas competências comportamentais e socioemocionais.
Em recente conversa com o Dr. Ives Gandra Martins – um dos mais renomados e respeitados juristas do Brasil, que tem uma carreira sólida, estruturou o seu escritório há quase 40 anos e dá aulas de Direito há mais de seis décadas -, percebi que mesmo tendo se formado e construído sua carreira em uma época em que o tema das soft skills não estava tão em voga quanto atualmente, suas habilidades comportamentais foram fundamentais para que ele se tornasse o profissional que se tornou.
Durante a entrevista para o podcast Direito de Resposta, Dr. Ives relembrou que no início da sua trajetória, em função de um embate profissional com o então ministro Delfim Neto, precisou rever seu planejamento de carreira e, ao invés de fazer doutorado na USP, foi dar aulas no Mackenzie: “Delfim era ministro do regime militar e havia solicitado a abertura de um inquérito policial militar contra mim em 68. Sugeriram-me que seria perigoso eu seguir minha carreira naquele momento e que, apesar de já ter concluído duas teses na USP, eu deveria esperar algum tempo para seguir com meus planos de doutoramento na instituição. Aí eu resolvi buscar outras universidades e o Mackenzie me ofereceu a oportunidade de dar aulas especiais no curso de pós-graduação. Comecei minha carreira no Mackenzie, que me abriu as portas naquele momento difícil da minha vida”.
A resiliência – que nada mais é do que a capacidade de se adaptar e resistir às adversidades – foi fundamental para que o Dr. Ives seguisse seu caminho no Direito, apesar dos riscos e reveses sofridos tão cedo. Mesmo tendo sido forçado a mudar seus planos iniciais logo após se formar, o jurista seguiu em frente, se tornou o titular de Direito Constitucional no Mackenzie e construiu uma carreira brilhante no magistério, em paralelo à trajetória como advogado. A resiliência, como sabemos, é uma das habilidades comportamentais, que vão além de qualquer conhecimento técnico.
Em um mercado que exige conhecimento e habilidades técnicas e intelectuais de alto nível, a dedicação e o gosto pelo estudo são duas outras soft skills fundamentais para o sucesso. Foi exatamente o gosto pelo estudo que fez com que o Dr. Ives se dedicasse para se tornar professor. “Eu sempre gostei de estudar. Desde moleque, meu pai tinha metros e metros de estudos para nós. Fiz meus cursos de especialização na USP em uma época em que não havia mestrado, pensando em seguir carreira universitária. As especializações eram como se fossem o mestrado, depois íamos direto para o doutoramento. Acho que a carreira universitária auxilia muito em uma visão muito mais abrangente do Direito e do exercício da advocacia”, conta ele.
Concordando ou não com suas ideias, interpretações e posicionamentos, é fácil identificar nas atitudes, histórias e falas do Dr. Ives duas outras características comportamentais imprescindíveis para advogados: consistência e integridade. Em uma profissão que tem respeitabilidade e confiabilidade como requisitos básicos, ambas as habilidades são essenciais. Um bom exemplo? Mesmo tecendo críticas às decisões recentes do STF, o jurista faz sempre questão de destacar as qualidades técnicas e capacidades dos ministros, sem nunca atacá-los pessoalmente.
“Não coloco em discussão a qualidade e o valor dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Eu tenho livros escritos com seis dos onze ministros, demonstrando, inclusive, como me sinto confortável em estar ao lado deles. Não ponho nunca em questão os juristas e idoneidade dos ministros que estão lá. Eu tenho, sim, divergido muito das decisões por ser formado em uma escola diferente, em que o poder judiciário era um poder puramente técnico. Mas apesar da divergência enorme com os ministros, eu os admiro como juristas. Como um velho professor universitário de 90 anos, na ativa há 61 anos, tenho direito a dar minha opinião. Não discuto a qualidade e tenho livros escritos com o ministro Alexandre de Moraes, por exemplo. Eu o admiro muito, cito seus livros de Direito Constitucional que são muito bons, mas me permito divergir. Liberdade de expressão”, diz ele ao falar sobre as recentes polêmicas envolvendo a atuação do STF.
Por fim, Dr. Ives destacou, durante nossa conversa, a importância da cidadania – condição de ter direitos e deveres em relação a um Estado, e a participar ativamente na sociedade – algo intrínseco ao exercício do Direito e à atuação dos profissionais da área. “Eu acho que todos os brasileiros deveriam exercer a cidadania, ter coragem de dizer o que pensam. Nós podemos errar muitas vezes em uma decisão, uma forma de interpretar, etc. Mas, nós sempre temos uma possibilidade de voltar à linha ética do ser humano. Isso faz com que eu me sinta tranquilo, apesar de muitas vezes ser atacado pessoalmente. Não respondo aos ataques. Eu acho que cada um tem o direito de pensar como quer. Não me afeta porque eu estou convencido daquilo que eu penso, entende? Se os outros me atacam por pensar dessa maneira, é um direito que eles têm. Eu acho que todos nós temos que aprender a exercer cidadania e o Brasil só será um país realmente democrático quando isso acontecer de fato. Podemos exercer cidadania cobrando nossos deputados com cartas a eles. Votamos neles, eles que ouçam as nossas opiniões. É assim que se tem o debate, o diálogo real, não é? O exercício da cidadania é fundamental numa democracia”, finalizou ele.